Uma das áreas do conhecimento mais favorecidas pelo avanço dos estudos sobre o cérebro é a educação. Cada vez mais, pesquisadores recorrem a técnicas de registro e imageamento para estudar, desde a vida intrauterina, como o desenvolvimento neurológico se relaciona a funções fundamentais para que o ser humano se desenvolva plenamente. Por Carla Tieppo.
A AUTORA: CARLA TIEPPO é neurocientista, doutora em ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da faculdade de ciências médicas da Santa Casa de São Paulo e da Faculdade de psicologia da Pontifícia Universidade. Católica (PUC) de São Paulo. Coordenadora do curso de pós graduação em neurociência aplicada à educação da Santa. Casa, é pioneira em cursos de extensão em neurociência no. Brasil; está à frente do Grupo Inédita.
Imensamente mais complexo que o de outros animais, nosso cérebro desenvolveu ao longo de sua evolução a capacidade de desempenhar de forma única funções complexas como consciência, linguagem, controle inibitório, processamento consciente de emoções e outras igualmente impressionantes. As ciências humanas, responsáveis pela produção de grande parte das observações e teorias sobre os processos mentais relacionados com a aquisição dessas capacidades, estão lentamente se aproximando dos conhecimentos neurocientíficos para ampliar o entendimento sobre o assunto. Recentemente, por exemplo, professores britânicos assinaram uma moção pedindo ao governo da Grã-Bretanha a inclusão de conteúdos de neurociência em cursos de formação para que futuros profissionais possam compreender melhor os processos mentais envolvidos na aprendizagem.
O fato é que o número de crianças afetadas por distúrbios de aprendizagem cresce ano após ano e a ampliação e o aprofundamento do conhecimento nessa área favorecem um diagnóstico mais preciso. Obviamente não podemos deixar de pensar que as mudanças pelas quais passamos nestes últimos 20 anos em relação à forma como nossa sociedade se organiza não sejam possivelmente uma das causas desse aumento vertiginoso de diagnósticos de déficit de atenção, hiperatividade, transtornos de conduta, dislexias, discalculias, entre outros. De qualquer maneira, a neurociência pode contribuir para a evolução das práticas pedagógicas que permitam desenvolver o indivíduo, aproximando-o da manifestação máxima de seus potenciais e tendo em vista crescentes demandas da idade contemporânea digital e virtual.
(QUEM NÃO CHORA NÃO MAMA: logo após o nascimento, as estruturas cerebrais do bebê estão em pleno funcionamento e já lhe permitem direcionar seu comportamento para obter o que precisa; às vezes isso significa simplesmente cair num choro inconsolável)
PERCEPÇÃO E ATENÇÃO:
Um dos pontos nevrálgicos do desenvolvimento da criança está no início de sua vida. É muitoimportante que nos primeiros meses o bebê experimente uma relação de absoluta segurança com os seus cuidadores porque a principal ocupação do sistema nervoso nessa fase é dedicar-se à sua sobrevivência. As estruturas cerebrais que estão em pleno funcionamento no período do nascimento permitem que o bebê direcione seu comportamento para a obtenção do que precisa – ainda que isso signifique simplesmente cair num choro inconsolável. O desenvolvimento do córtex cerebral só ocorrerá na sua máxima potencialidade se a criança estiver livre de seus compromissos com a sobrevivência e possa se aventurar a descobrir o novo. Segundo a pesquisadora Helen Neville e seus colaboradores do Laboratório de Desenvolvimento Cerebral do Centro de Neurociência Cognitiva da Universidade de Oregon, a função que chamamos de atenção é desenvolvida a partir da aquisição de três capacidades cerebrais que ocorrem em momentos distintos do desenvolvimento da criança. Primeiro, o bebê precisa orientar a atenção para um objeto, utilizando o córtex. Antes disso, seu comportamento é fortemente direcionado por estímulos sensoriais (especialmente olfativos) associados à alimentação, ao calor e ao conforto. Essa dinâmica mais primitiva, essencial para a sobrevivência, está relacionada às funções de áreas situadas abaixo do córtex cerebral que direcionam o comportamento para a sobrevivência: o cheiro, a face, o seio e o conforto térmico da mãe são desejados e procurados. Para que o bebê oriente sua atenção a um objeto, suas necessidades primárias precisam estar saciadas. Além disso, essa orientação cortical da atenção parece ser possível só quando ele atinge certo grau de amadurecimento na função das áreas corticais responsáveis pelo processamento dos diferentes estímulos sensoriais. Esse interesse pode estar relacionado a cores, movimentos ou sons. A atenção permanecerá no objeto somente enquanto ele for capaz de manter ativadas as regiões de processamento sensorial. Por essa razão, objetos com características inéditas receberão sempre mais atenção. A função cerebral está qualificando estímulos entre conhecidos e novos – e associando o objeto identificado com sensações, especialmente emocionais. Depois de aprender a direcionar a atenção, um novo desafio está em conseguir manter a atenção dirigida a um foco por mais tempo. Isso também depende do desenvolvimento do córtex cerebral, especialmente das estruturas do córtex frontal intimamente relacionadas com o planejamento de ações do indivíduo. Assim, no extremo dessa capacidade podemos observar a criança mergulhar fundo em determinadas atividades e ficar completamente abstraída do restante. Por essa razão, ambientes com riqueza de estímulos podem ser muito interessantes. Porém, em excesso podem ser inimigos do desenvolvimento da atenção sustentada. O terceiro aspecto a ser desenvolvido é a capacidade de equilibrar os dois processos anteriores. O córtex cingulado anterior utiliza informações provenientes do processamento emocional (valência emocional) para promover um controle atencional que seja capaz de dar conta dos novos estímulos, mas que também possa se abstrair deles para se dedicar à interação mais demorada num processo mais longo – como se ater a uma história. Trabalhando com animais de laboratório, o doutor em zootecnia Wayne Bryden e seus colaboradores da Universidade de Queensland, na Austrália, puderam demonstrar que o córtex cingulado anterior está diretamente relacionado à detecção de erros preditivos. Assim, uma recompensa associada a uma tarefa pode ser melhor ou pior do que o esperado, e o córtex cingulado anterior estará fortemente ativado quando isso acontecer. Em crianças, esse processo pode significar que a surpresa e o resultado diferente podem chamar muito atenção. Também o córtex cingulado anterior pode ajudar a eliminar elementos que causam distração. O neurocientista Daniel Weissman, diretor do Laboratório de Atenção e Controle Cognitivo, em Michigan, demonstrou por meio de ressonância magnética funcional que regiões dorsais do córtex cingulado anterior são especialmente ativadas quando o indivíduo precisa fixar a atenção em um evento mas está sofrendo pressão de outros estímulos. Além disso, essa região situa-se na interface entre os estímulos emocionais e o córtex frontal, numa posição considerada estratégica.
SONO E LEMBRANÇAS: Outra questão importante para os processos de aprendizagem é a capacidade de memorizar – e, quando se considera esse processo, não nos referimos a decorar. A memorização envolve diferentes etapas que culminam no armazenamento de informações. O que diferencia o aprender do decorar é o tempo que a informação poderá permanecer suficientemente “ativada” para ser evocada. Ao adquirir informações que poderão ser utilizadas no futuro, a criança armazena o conteúdo na forma de memória de longo prazo. Um dos avanços mais importantes da neurociência está justamente no entendimento da relação entre sono e memória de longo prazo. Vários experimentos em animais demonstraram que durante uma das etapas do sono, a chamada fase REM (sigla em inglês de rapid eyes movements, movimentos rápidos de olhos), uma parte muito antiga do nosso córtex, o hipocampo, parece trabalhar com o córtex para o armazenamento de informações por mais tempo. Essa transferência não ocorre para qualquer tipo de dado, mas sim para aqueles aos quais o hipocampo tenha sido especialmente sensibilizado, seja pelo conteúdo emocional que contêm, seja pela repetição com que foram apresentados – daí a importância de memorizar. Nossa noite de sono é dividida em duas etapas principais. Em uma delas, o cérebro encontra- -se num estado de atividade chamado fase de ondas lentas, no qual, acredita-se, os circuitos neurais menos ativados permitem a recuperação metabólica dos neurônios. Durante as primeiras horas após adormecermos, permanecemos nessa modalidade, e, à medida que o tempo de sono vai ficando maior, esses períodos vão sendo substituídos por episódios mais duradouros de ondas rápidas (REM). Pode estar aí a explicação para o fato de que nos períodos em que estamos produzindo e fortalecendo novas conexões e circuitos nervosos, ou seja, na infância, nossa necessidade de horas diárias de sono também seja maior. Assim, um dos aprendizados mais importantes que podemos tirar de nossos conhecimentos neurocientíficos é que nossas crianças precisam dormir bastante e ter um sono de qualidade. Nesse sentido, rotinas que favoreçam o estabelecimento de um ritmo adequado de sono são fortemente recomendadas.
(NA ERA DA TECNOLOGIA: professores precisam se dividir para dar atenção a vários alunos, na tentativa de responder, interagir e estimular crianças que, acostumadas com computadores e tablets, já não sabem esperar)
LER, CONTAR E BRINCAR:
Outro aspecto que está se perdendo na nova sociedade é a atividade física lúdica e variada. Optamos por colocar nossos filhos em aulas de natação, lutas marciais, ginástica olímpica e outras tantas direcionadas para o corpo. Por outro lado, também é crescente o número de crianças que não querem trocar o videogame nem o computador por essas atividades. A prática de exercícios físicos direcionados favorece a disciplina, mas por esse mesmo motivo pode se tornar tão entediante quanto as aulas expositivas da escola. Vários estudos mostram que a atividade física favorece o desenvolvimento cerebral e auxilia tanto crianças quanto adultos na resolução de problemas e tomada de decisão. Entretanto, brincar livremente desenvolve circuitos neurais novos a todo instante porque a brincadeira sem normas preestabelecidas pode mudar, ser inventada, não cansa nem entedia Mas o fato é que, livre ou disciplinada, a atividade física auxilia o desenvolvimento do cerebelo. Todo tipo de motricidade precisa dessa área do cérebro para ser executado com precisão. Isso não é novidade, mas o que pode modificar nossa forma de ver o desenvolvimento motor da criança são descobertas da neurociência que associam o desenvolvimento do cerebelo com o da linguagem, da leitura e escrita e do raciocínio matemático. Depois de muito tempo de controvérsias sobre o tema, em fevereiro deste ano pesquisadores de vários grupos propuseram um consenso sobre o papel do cerebelo na cognição. Essa área localizada na base anterior do cérebro tem sido chamada de “máquina de aprendizado supervisionado”. O papel do cerebelo na cognição seria muito semelhante ao que desempenha na aquisição dos chamados movimentos balísticos. O pesquisador Jeremy Schmahmann, professor de neurologia da faculdade de medicina da Universidade Harvard, já havia considerado que o cerebelo desempenhava funções como força, ritmo e acurácia do movimento da mesma forma que regulava a velocidade, a consistência e adequação dos processos emocionais e cognitivos. Detectando erros na execução, o cerebelo seleciona circuitos que aproximam o movimento realizado do pretendido, promovendo sua automatização. Se considerarmos que a automatização de processos é muito importante para aquisição de linguagem, leitura e escrita e para a produção do raciocínio matemático, poderemos aproximar nossas abordagens de ensino dessas funções do conhecimento que temos sobre a circuitaria neuronal cerebelar e construir modelos de aprendizagem mais eficientes.
INIBIR PARA APRENDER: Relacionadas ao córtex pré-frontal, as funções executivas estão associadas ao amadurecimento emocional e completam seu desenvolvimento apenas por volta da época em que a pessoa completa 20 anos. Durante todo o desenvolvimento de crianças e dos adolescentes, essas funções precisam ser estimuladas, mesmo porque a execução de muitas outras capacidades necessárias na vida adulta depende delas. São aquelas habilidades que nos auxiliam a agir no mundo de forma mais adaptativa, ou seja, quando precisamos raciocinar diante um problema, tentar nos concentrar num ambiente com outros estímulos competitivos ou aprender algo novo na escola. As atividades simples do dia a dia, como cozinhar, ir para a escola e fazer compras, também recrutam essas habilidades cognitivas. A doutora em desenvolvimento e especialista em neuroanatomia Adele Diamond, da Universidade Colúmbia Britânica, ressalta que as funções executivas principais, consideradas mais simples, incluem habilidades de flexibilidade cognitiva, inibição e memória de trabalho. Já as funções executivas mais complexas abrangem a capacidade de resolução de problemas, o raciocínio e o planejamento. A inibição inclui o autocontrole e o controle de interferências, que requer o desenvolvimento da atenção seletiva e da inibição cognitiva. A memória de trabalho é a capacidade de manter várias informações “vivas” na mente para que sejam processadas simultaneamente. A flexibilidade cognitiva está diretamente relacionada à criatividade e à possibilidade de pensar em soluções alternativas. Dessas funções executivas surgem capacidades mentais muito desejáveis, como raciocínio, solução de problemas e planejamento. Estudos internacionais e nacionais indicam a relação entre as funções executivas e o desempenho escolar. O controle atencional, por exemplo, é um dos preditores de desempenho de crianças pré-escolares em disciplinas que exigem domínio da linguagem e de noções de matemática. O nível de desenvolvimento de funções executivas no início do processo de escolarização também é um indicador de futuro desempenho. Alunos que iniciam a vida escolar com níveis mais altos de funções executivas e autorregulação têm mais facilidade para receber instruções, apresentam menos dificuldade de aprendizagem e demonstram mais prazer e dedicação nas atividades propostas. Já os estudantes com baixo desenvolvimento dessas funções, além de apresentarem o comportamento oposto, tendem a não finalizar as tarefas, abandonando-as pela metade.
(ATIVIDADE FÍSICA auxilia tanto crianças quanto adultos na resolução de problemas e tomada de decisão; brincar livremente favorece o desenvolvimento de novos circuitos neurais)
LUGAR DE ALEGRIA:
Por volta dos 6 anos as crianças já são capazes de se autorregular no âmbito físico, emocional e, em parte, cognitivo. Nessa fase os pequenos são reativos, ou seja, reagem de forma espontânea aos estímulos. Já podem adiar a realização de coisas prazerosas, parar comportamentos agressivos e agir de maneira positiva controlando suas emoções. A regulação cognitiva envolve a metacognição e o pensamento reflexivo, sendo completamente desenvolvida apenas no final do ensino fundamental. Antes de se autorregularem, as crianças são capazes de regular o outro, ou de serem reguladas por outras crianças. No tam quando outra pessoa está quebrando uma regra, não percebem que elas próprias estão fazendo e aplicam as normas aos outros antes de as adotar para si mesmas. O estado emocional das pessoas pode afetar diretamente suas funções executivas. Estudos mostram, por exemplo, que a capacidade de manter a atenção seletiva é prejudicada quando estamos tristes, estressados, solitários e até fora de forma física. O estresse inibe as funções executivas, afetando o desempenho escolar, pois diminui o controle do córtex pré-frontal e, em certos casos, prevalece a impressão de que a pessoa sofre de alguma deficiência ou distúrbio como o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Portanto, é fundamental que a escola seja um espaço capaz de promover alegria, tranquilidade, trabalho em equipe e cooperação. Da mesma maneira, crianças que apresentam funções executivas bem desenvolvidas têm melhor regulação do cortisol, conhecido como hormônio do estresse, o que faz com que lidem melhor com situações estressantes. Investir no desenvolvimento de estratégias para desenvolver as funções executivas, portanto, é uma forma importante de promoção da resiliência nas crianças.
(PARA SABER MAIS: Neuroscience and education: myths and messages, Paul A. HowardJones, em Nature Reviews Neuroscience, 2014. Neurociência e educação – Como o cérebro aprende. Ramon M. Cosenza e Leonor. B. Guerra. Artmed, 2011. O cérebro que aprende – Lições para a educação. Sarah-Jayne Blakemore e Uta Fritsch. Gradiva, 2009)